COVID-19: a revisão e a resolução do contrato civil em época do coronavírus SARS-CoV-2

INTRODUÇÃO

A pandemia global do covid-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, constitui uma situação de gravidade extrema e generalizada, que repercute em diversos aspectos da vida individual e da vida social. A mudança de comportamento dos cidadãos estimulada e, às vezes, exigida pelo poder público, para a contenção da pandemia global prejudicou a economia substancialmente, estando a maioria dos estabelecimentos comerciais fechados no país e em boa parte do mundo. Por consequência, os rendimentos das pessoas naturais e jurídicas foram igualmente prejudicados, havendo repercussões nas relações contratuais.

A autonomia privada, exercida por pessoas civilmente capazes, fundamenta a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e a conservação do negócio jurídico. De acordo com esses princípios, os contratos são modificáveis pela vontade das partes contratantes e podem ser extintos na forma regulada pela lei e pelo próprio contrato. Em regra, não é possível a revisão judiciária do contrato. 

No entanto, a superveniência de fato que torne a cláusula contratual excessivamente onerosa autoriza a revisão judicial do contrato (rebus sic stantibus). Em direito do consumidor, basta a verificação da base objetiva da equidade contratual (art. 6º, V, do CDC/90), enquanto no direito civil exige-se que o fato superveniente seja imprevisível e extraordinário (arts. 317 e 478). 

1 A CARACTERIZAÇÃO DO FATO IMPREVISÍVEL

A superveniência de fato é posta genericamente na lei, porém a jurisprudência tem-na relacionado à situação do mercado, dificultando a aplicação do dispositivo em uma sociedade complexa, globalizada e interconectada, na qual somente fatos catastróficos seriam considerados imprevisíveis e extraordinários. 

Todavia, há de ser ponderado o critério subjetivo para a preservação da autonomia da vontade diante de fato imprevisto (que não tenha sido vislumbrado pelas partes no negócio jurídico), que cause excessiva onerosidade, extrapolando os usos e costumes. Bem assim, para a preservação da autonomia da vontade e da boa-fé (arts. 113 e 187), devem ser apreciados os motivos determinantes e a razão de ser do contrato, para se evitar a frustração da finalidade declarada no seu objeto. 

Sem dúvida, a pandemia global do SARS-CoV-2 enquadra-se como fato imprevisível e extraordinário Não há precedente na história da humanidade como o covid-19, em profundidade e abrangência global, a vista das reações dos organismos internacionais, dos governos nacionais e a repercussão econômica generalizada. Esse fato imprevisível e extraordinário autoriza a aplicação da teoria da imprevisão e da cláusula rebus sic stantibus, para verificação da ocorrência de onerosidade excessiva em cada caso.

2 A INEXECUÇÃO DE OBRIGAÇÃO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA

A onerosidade excessiva, causada pelo fato imprevisível e extraordinário, pode vir a ser a causa de inadimplemento da obrigação contratual. Quando houver comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, poderá o devedor pedir a sua revisão ante a manifesta desproporção entre o valor da prestação estabelecida e o gravame da prestação no momento da sua execução (art. 317); poderá o devedor, nos contratos de execução continuada ou diferida, pedir a sua resolução, alegando a onerosidade excessiva (art. 478). 

A inexecução absoluta das obrigações contratuais, decorrente de fato imprevisível ou extraordinário como o covid-19, pode conduzir à revisão do contrato ou à extinção do contrato, dependendo da análise de cada caso especificamente considerado. 

Nos contratos em geral, quando ocorrer o inadimplemento relativo das obrigações contratuais, em virtude da pandemia global do covid-19, o devedor não poderá ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de força maior ou caso fortuito (art. 393). Obviamente, a situação tem que ser real, não podendo o devedor exceder os limites da boa-fé para se furtar do cumprimento dos encargos moratórios (art. 187). Assim, o devedor deve demonstrar o abalo por ele sofrido em virtude do fato imprevisível e extraordinário. A sanção prevista em cláusula penal pode ser reduzida equitativamente, tendo esta se tornado manifestamente excessiva (art. 413). 

Não é possível exigir o implemento da obrigação antes do vencimento da prestação nem antes do cumprimento da parte que lhe cabe (art. 474). Porém, a modificação da situação fática pode levar a impossibilidade de cumprimento da prestação, sem a culpa do devedor, induz a resolução do contrato sem o pagamento de perdas e danos, em obrigações de entregar, de fazer e de não fazer (arts. 234, 248 e 250). O inadimplemento antecipado inclui-se nessa situação, quando a parte contratual percebe antes do vencimento da prestação a impossibilidade de cumprimento da prestação. 

3 A REVISÃO DO CONTRATO

Diante de um motivo imprevisível (art. 317) ou de um acontecimento imprevisível e extraordinário (art. 478), a revisão judiciária do contrato é possível em contrato bilateral, sinalagmático, oneroso, comutativo, de execução diferida ou de trato sucessivo. Excepcionalmente, aplica-se a revisão contratual em contrato unilateral (art. 480), sobre a parte comutativa de um contrato aleatório. 

Nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário. Entretanto, uma lide pode se arrastar por anos no Judiciário e, normalmente, deteriora a relação social, sendo aconselhável a busca de meios extrajudiciais para o reequilíbrio da relação contratual, através de autocomposição ou mediação. A esse respeito, a Lei da Liberdade Econômica consagrou os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual (arts. 421 e 421-A, parágrafo único, do CC/02, na redação dada pela Lei nº. 13.874).

Sendo inviável a solução sem a intervenção do Judiciário, a simples propositura da ação revisional do contrato não inibe a caracterização da mora do autor (súmula nº. 380, do STJ). Por isso, ele pode requerer a concessão de tutela provisória para depositar o valor incontroverso, evitando a mora. No curso de uma ação de revisão de contrato de empréstimo, financiamento ou alienação de bens, o valor incontroverso deve continuar a ser pago ao credor ou em depósito judicial (art. 330, §2º, do CPC/15). Sem a proteção da decisão precária, o autor expõe-se ao risco do resultado final da ação e até mesmo de responder a uma simultânea ação de cobrança ou, se for o caso, de execução de título extrajudicial.

A sentença operará efeitos retroativos, especialmente em ação de revisão de contratos já extintos. Estes podem ser revistos por onerosidade excessiva, por inexecução de obrigação, ou ainda por responsabilidade civil contra ato ilícito, como no caso de abusividade (súmula nº. 286, do STJ).

4 A RESOLUÇÃO DO CONTRATO

Caracterizada a onerosidade excessiva a partir de fato imprevisível e extraordinário, havendo comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro do em contrato de execução continuada ou diferida, poderá o devedor pedir a sua resolução (art. 478). Nesse caso, o devedor deverá demonstrar o nexo de causalidade entre o fato imprevisível e extraordinário e a iminência da inexecução absoluta das obrigações contratuais, que justificarão a quebra dos princípios da conservação dos contratos e da autonomia privada. 

O covid-19 afigura claro fato imprevisível e extraordinário que, somado a onerosidade excessiva, pode conduzir à revisão do contrato ou à extinção do contrato, dependendo da análise das repercussões da pandemia global ao caso especificamente considerado. 

Salvador, 08/04/2020.

Ricardo Maurício Nogueira e Silva
Advogado. Especialista em direito público pela Universidade Federal da Bahia.
Membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

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