Todos se recordam da enxurrada de notícias que anunciavam, no dia 08 de janeiro de 2023, que terroristas invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, depredando o patrimônio público com a finalidade de promover um golpe de Estado para instituir um governo militar que depusesse o irrepreensível Presidente da República, eleito pelo inquestionável sistema eleitoral. Ao menos esse foi o relato emplacado uníssona e unanimemente pelos veículos da grande mídia e pelos excelsos dirigentes dos três poderes políticos.
Ao completarmos um ano do trágico incidente, que veio a ser chamado de dia da infâmia, o juiz relator e o chefe do executivo vêm promovendo entrevistas e eventos, tentando consolidar a narrativa empreendida. O notório consenso corporativo, nos campos jurídico, político, artístico e na comunicação social, revela ao observador a existência de uma coordenação hegemônica, com a finalidade de justificar a detenção maciça de 2.151 (duas mil cento e cinquenta e uma) pessoas, nos dias 08 e 09. Após o depoimento na Polícia Federal, 1.406 delas foram encaminhadas para a penitenciária, muitas ainda mantidas em cárcere, com excesso de prazo, ao tempo que se abandonou silenciosa e seletivamente a política de alternativas à prisão, como medida de redução do encarceramento em massa. Devemos então reexaminar os axiomas da narrativa ofertada ostensivamente pela superestrutura dominante.
No presente artigo, publicado por ocasião do aniversário do infamante Oito de Janeiro, analisaremos: (i) o contexto das manifestações; (ii) a depredação do patrimônio público e abusiva forma de reparação dos danos; (iii) a ocupação dos prédios públicos; (iv) as prisões do dia 08; (v) as prisões do dia 09; (vi) a perfídia das forças armadas e policiais; (vii) a coleta compulsória de material genético e a vacinação forçada; (viii) o excesso de prazo para a audiência de custódia; (ix) a nulidade de elemento do inquérito; (x) a incompetência absoluta do juízo; (xi) a suspeição e o impedimento do Ministro Relator; (xii) o excesso de prazo da prisão preventiva; (xiii) a falta de intimação de testemunhas; (xiv) a inépcia da denúncia; (xv) a desastrosa acusação de associação criminosa e de crime multitudinário, sem individualização da pena; (xvi) a impossibilidade fática e jurídica dos alegados crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado; (xvii) a tortura psicológica dos presos políticos; (xviii) o óbito do Clezão; (xix) a intimidação pela política criminal de estilo soviético e fascista; (xx) e a desclassificação do crime de terrorismo, acompanhada do crime de calúnia.
Começando pelo começo, não se pode olvidar de todo o contexto das manifestações, que duraram mais de 60 (sessenta) dias, de modo pacífico e ordeiro, em todo o país, sem que o Tribunal Eleitoral apresentasse qualquer esclarecimento ao titular do poder político, que é o povo. Em vez disso – após a anulação das condenações do vitorioso candidato, confirmadas em todas as instâncias, após o banimento de pessoas das redes sociais, após prisões de jornalista, parlamentar e presidente de partido político pelo uso da palavra, após surgirem questionamentos sobre a lisura do sistema eleitoral não auditável -, os eleitores ouviram frases como: “eleição não se ganha, se toma”; “perdeu mané”; “missão dada é missão cumprida”; “nós derrotamos o bolsonarismo”; “ainda tem muita gente para prender e muita multa para aplicar”; entre tantas outras que colocavam em dúvida a imparcialidade dos juízes em questão.
Nesse contexto nebuloso, parece salutar recordar que o pluralismo político faz a Constituição assegurar a cada indivíduo, como cláusula pétrea, o direito fundamental à livre manifestação do pensamento e de expressão que, além de constituir pressuposto da democracia, forma a essência de cada ser humano, individualmente considerado e a sua criminalização seria o mesmo que extinguir a existência social da pessoa.
De logo, é importante ressaltar que a reprovável depredação do patrimônio público constitui do crime de dano – frise-se, praticado por alguns e não por todos – e não se confunde com a ocupação do espaço público, erroneamente classificado como invasão. Obviamente, não se pode ingressar em qualquer prédio público com a finalidade de praticar esbulho possessório ou incorrer em desobediência à autoridade investida. Contudo, a permissividade se depreende tanto do baixo contingente de policiais presentes como pela existência de vídeo, no qual eles estimulam o ingresso dos manifestantes nos prédios públicos. Portanto, não é possível falar em crime de desobediência. Eventual intenção de praticar o esbulho possessório teria que ser verificado individualmente, tal qual exige o sistema constitucional brasileiro, quanto à individualização da pena.
Impõe-se-nos a questão da legitimidade de quem estaria a usurpar o espaço público, nesta estremecida democracia: parte do povo, que ocupou momentaneamente o prédio público com a finalidade de protestar politicamente – distinguindo-se mais uma vez em relação àqueles que depredaram o patrimônio público -, ou a cúpula dos poderes políticos, que segue incomodada e apartada do convívio social, em relação a parte significativa do povo brasileiro.
Excedendo poderes constitucionalmente previsto até mesmo à decretação de estado de sítio, no dia 08/01/2023, o Ministro Relator ordenou uma série de medidas como: prisão preventiva do Secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, e do Comandante da PM-DF, Fábio Augusto Vieira; suspensão do exercício da função de Governador do DF ao Ibaneis Rocha; desocupação e dissolução total dos acampamentos nas imediações dos Quartéis Generais em todo o território nacional e a prisão dos manifestantes; intimação de todos os Governadores para efetivar a desocupação de vias públicas em todo o território nacional, sob pena de responsabilidade pessoal; apreensão de ônibus que transportaram os manifestantes para o DF, com identificação dos seus proprietários e dos passageiros; proibição de ingresso de manifestantes no DF até o dia 31/01; intimação da ANTT para que fornecesse o registro de todos os veículos que ingressaram no DF entre os dias 05 e 08/01; obtenção de todas as imagens de câmaras no DF para proceder o reconhecimento facial de manifestantes; identificação de todos os hóspedes através de listas de registros e imagens de câmeras nos saguões das hospedarias do DF no período; utilização de dados pessoais mantidos pelo TSE para identificar e localizar pessoas; bloqueio de canais, perfis e contas em redes sociais.
A maioria esmagadora das prisões não foi realizada nos prédios públicos, no dia 08/01/2023, mas sim no dia seguinte (09/01/2023), realizadas contra manifestantes desarmados, encontrados no acampamento de protesto pacífico e ordeiro, independentemente de terem ido ou não à Praça dos Três Poderes no dia anterior. Logo mais, nos autos das prisões realizadas no dia 09/01, vieram-se a registrar como pertences dos detidos objetos como bíblias e bandeiras nacionais; dentre as 2.151 pessoas detidas, incluídas as 243 prisões realizadas no dia 08/01, chegou-se a encontrar “um machado, um canivete e uma faca esportiva”, que podem ser de pessoas infiltradas ou exasperadas. Fato é que o grosso dessa gente estava desarmada, tanto no acampamento como na Praça dos Três Poderes. Em recente entrevista concedida ao jornal “O Globo”, o Ministro Relator reconheceu: “Eu afirmaria sem medo de errar que não precisaria 100 (cem) homens do choque para dispersar aquilo; nós vimos que não havia polícia”.
Os manifestantes não apresentavam risco algum às instituições do Estado Democrático de Direito e aos policiais e soldados, inclusive pela reverência que os manifestantes possuíam pelas corporações, ainda sem compreender a deslealdade criminosa que estava prestes a ocorrer. É que os soldados e policiais vieram a cercar o acampamento na aurora do dia 09/01/2023, fortalecidos pela certeza do descompasso das forças, em ação tipificada internacionalmente como perfídia.
Como demonstram vídeos e depoimentos, as forças armadas estavam a induzi-los a erro, guiando-os aos ônibus sob a promessa de mero desfazimento do acampamento, mas levando-os a um campo de concentração, que se transformou o ginásio da Polícia Federal, em Brasília. Definitivamente, não foi esta a primeira vez que, em solo brasileiro, foram traídos aqueles que devotaram à Pátria o mais entranhado amor – assim enxergo a maioria esmagadora dos manifestantes -, na busca de esclarecimentos sobre um processo eleitoral, acirrado e obscuro, em cuja história a fraude tem sido uma constante, como nos informa Victor Nunes Leal, no seu clássico “Coronelismo, enxada e voto”.
No campo de concentração de presos, não houve separação de homens e mulheres e mantiveram juntos, nessas condições, idosos e até animais, sem registro de violência, salvo ocorrências como infarto, hipertensão e tentativa de suicídio.
A lista de presos, elaborada pela Secretaria de Administração Penitenciária – SEAP, teve diversos erros, como a duplicidade de nomes e o consequente erro no número ou falta de identificação de presos, remetendo-se à indignidade do tratamento dos presos. O equívoco revela-se matematicamente ao se observar o anúncio da prisão de 2.151 pessoas, que não se equaliza com o somatório dos 243 presos no 08/01 com os 1.929 dos detidos no acampamento no dia 09/01, faltando se identificar 21 presos. Após a oitiva, os detidos foram remetidos ao Instituto Médico Legal (IML) e, posteriormente, ao Centro de Detenção da Papuda, onde foram submetidos a vacinação forçada e exame de identificação genética.
As audiências de custódia foram realizadas com atraso, violando-se direitos humanos, assegurados em tratado internacional. Nestas assentadas, realizadas pelos juízes de primeiro grau, por ordem do Ministro que avocou a relatoria, vedou-se qualquer ato decisório, impossibilitando até mesmo eventual relaxamento da prisão, diante de ilegalidade patente, ainda que houvesse pedido do titular da ação penal nesse sentido.
Processualmente, as prisões se desenrolaram através da Petição nº. 10.820, protocolada no dia 11/01/2023 – ou seja, dois dias após as prisões -, nos autos do Inquérito nº. 4.879, iniciado muito antes, em 16/08/2021, voltado a investigar as manifestações do Dia da Independência do Brasil no ano de 2021, não possuindo conexão alguma com o fato em questão. A esse respeito, é importante salientar que o inquérito não pode se estender indefinidamente. Na legislação vigente, o prazo mais longo de duração para o inquérito é de 90 (noventa) dias (art. 51, da Lei nº. 11.343), quando o indiciado por narcotráfico estiver solto. Portanto, nulo o inquérito e frustrado o seu valor probatório, não apenas pela ilegal restrição de acesso aos advogados. A manutenção do procedimento induz à conclusão de ter ele se tornado um instrumento de repressão política. Posteriormente, foram abertos 04 (quatro) inquéritos: nº. 4.920 voltado a investigar financiadores e partícipes por auxílio material, nº. 4.921 para investigar autores intelectuais e partícipes por instigação, nº. 4.922 para investigar executores materiais e nº. 4.923 para responsabilizar autoridades omissas.
O Supremo Tribunal Federal é incompetente para investigar, processar e julgar crimes comuns, pois estes são atribuídos pela Constituição à Justiça comum estadual (art. 125, §1º). Ainda quando se trata de crime político, a competência seria da Justiça Federal (art. 109, IV). Quanto à jurisdição política, a competência seria do Senado ou da Câmara Federal (art. 52, I, II e parágrafo único; e art. 51, I, da CF/88). A competência em razão do lugar deveria ser atribuída, conforme determina a lei, para os juízes do primeiro grau de jurisdição (art. 69, do CPP).
Ainda nos casos eventuais e pontuais de crimes cometidos na sede do STF, o Presidente do Tribunal iria adotar as diligências e designar por sorteio o relator para acompanhar o caso, não sendo possível a avocação por nenhum ministro ou a inclusão em inquérito pré-existente ao fato.
Como leciona o Prof. Júlio Fabbrini Mirabete:
“É evidente, porém, que um juiz não pode julgar todas as causas e que a jurisdição não pode ser exercida ilimitadamente por qualquer juiz. Por isso, o poder de julgar, ou jurisdição, é distribuído por lei entre os vários órgãos do Poder Judiciário, através da competência. A competência é, assim, a medida e o limite da jurisdição, é a delimitação do poder jurisdicional” (Processo penal, SP, Atlas, 2000, p.167).
Mesmo nos casos de foro por prerrogativa de função, a recente jurisprudência do STF atesta a redução da sua amplitude, ao dizer que se aplica “apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas” (AP 937/RJ, Rel. Min. Luís Roberto Barroso). Assim, um sujeito que detenha prerrogativa de foro vier a cometer um crime sem relação com seu mandato, não será julgado originariamente por esta Corte (AgR no Inq nº 4.513/PE). Mesmo nas hipóteses de conexão e continência, quando há alguns denunciados com foro por prerrogativa de função e outros sem ele, determina-se o desmembramento do processo para manter no Supremo Tribunal Federal o julgamento apenas de quem o possui e para remeter o processamento dos demais acusados para as instâncias ordinárias.
Portanto, é patente o vilipêndio da Constituição, que assegura expressamente o direito fundamental da pessoa humana de ser processado ou julgado somente pelo juiz competente (art. 5º, XXXVII e LIII), limitados os poderes do Estado, para que não constitua juízo ou tribunal de exceção. A regra do juiz natural previne a tentadora flexibilização de garantias fundamentais em momentos dramáticos que podem surgir no contexto de acirramento político, no seio da sociedade.
Sendo absolutamente incompetente o juízo (arts. 95, II, 108 e 109 do CPP), para investigar, processar e julgar, por inexistência de matéria afeta ou prerrogativa de foro capaz de atrair a competência ao STF, tornando-se nulo todo e qualquer ato decisório (arts. 564, I, e 567, do CPP).
Demais disso, incorre em suspeição o Ministro Relator para processar e julgar a causa, por vários motivos: (i) em razão da natureza da ação que trata de crime comum relacionado ao processo eleitoral, em que ele funcionou como presidente da justiça especializada (art. 252, III, do CPP/41); (ii) a demonstração do ânimo do Relator, em inúmeras situações, tanto em relação a um candidato quanto em relação aos eleitores desse candidato, como nas ruas de Nova Iorque (art. 252, IV, do CPP/41); (iii) em entrevista concedida ao jornal “O Globo”, o Ministro Relator revelou ter adotado conduta que pode ser conceituada como consultoria, assessoria ou direção jurídicas, junto ao Presidente da República e ao Ministro de Justiça; (iv) na qual se reconheceu também como vítima de suposto plano de crimes de sequestro, cárcere privado, homicídio e enforcamento; (v) diversas vezes ele se pronunciou fora dos autos, por diversos meios de comunicação, emitindo opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, o que vedado a magistrados (art. 36, III, da LC nº. 35).
Houve processos em que as testemunhas arroladas pela Defesa não foram ouvidas. Mesmo diante da imprescindibilidade para elucidar os fatos, foram recusadas testemunhas como o Major da PMDF Flávio Silvestre Alencar, o Comandante-Geral da PMDF Klepter Rosa Gonçalves, o Major Cunha Comandante do Batalhão de Choque PMDF, o General Marco Edson Gonçalves Dias Ex-Ministro da Segurança Institucional – GSI, o fotógrafo Adriano Machado da Agência Reuters, o Coronel Jorge Eduardo Naime Barreto Ex-chefe do Departamento Operacional da PMDF, o Capitão Josiel Pereira César Ajudante de ordens do comando-geral da PMDF e o Ministro da Justiça Flávio Dino.
Em se tratando de militares e de funcionários públicos, é imprescindível a intimação das testemunhas, ainda com ofício expedido aos seus superiores hierárquicos. Contudo, tal expediente não foi realizado, em prejuízo da Defesa. Nesses casos, o não comparecimento das testemunhas deveria ser seguida da afamada condução coercitiva.
A falta de intimação das testemunhas arroladas em caráter de imprescindibilidade constitui cerceamento de defesa, afigurando nulidade absoluta que impede a realização da sessão de julgamento.
Nos processos em geral, a inépcia das denúncias é verificada pela ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal, pois constituiria óbice ao contraditório, ao exercício do direito à ampla defesa, em violação ao princípio constitucional do devido processo legal. As peças acusatórias, em regra, não observaram todas as exigências do art. 41, do CPP/41, notadamente ao deixar de apontar os indícios de autoria e os elementos das figuras típicas que denunciavam, o que essencialmente poderia ter sido feito através de filmagens dos ambientes vandalizados, caso o Ministério da Justiça as fornecesse.
Sem tal precaução, a denúncia impossibilitou a individualização da conduta e imputou eventos delituosos de modo abstrato, lançando mão de narrativa conspiracionista de que haveria mentores intelectuais e agentes financiadores, sugerindo treinamento prévio de executores materiais. Quanto a eventuais agentes financiadores, há de se distinguir financiamento para a prática delituosa daquela arrecadação financeira (vaquinha) entre manifestantes para manutenção de protestos legítimos em acampamentos, senão estar-se-ia a desacreditar a capacidade de mobilização do povo soberano para realizar os seus pleitos, na forma constitucionalmente admitida.
As peças acusatórias deveriam conter a exposição do fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Como a denúncia não descreveu adequadamente o fato criminoso e não estabeleceu a necessária vinculação da conduta individual de cada agente ao evento delituoso, insuperavelmente elas se qualificam como ineptas. Em vez disso, o MPF alegava que as pessoas insatisfeitas com o resultado eleitoral de 2022, que teriam se associado, “de forma armada (…) com o objetivo de praticar crimes contra o Estado Democrático de Direito”, o que já vimos ser uma inverdade.
Há de se distinguir a associação para manifestação pacífica da associação criminosa, isto é, aquela com finalidade de praticar crimes, bem como distinguir essas duas hipóteses de eventual pedido de intervenção, quando nos limites da previsão constitucional. É fundamental a contemplação dessa matéria e a apreciação dos princípios do in dubio pro reo, da intranscendência da pena (art. 5º, XLV, da CF/88; art. 5º, §3º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e de humanidade, para que se evite a criminalização de simples manifestação política do cidadão pacífico e ordeiro em busca de explicações do Tribunal Eleitoral.
Despropositado foi o enquadramento do fato como crime multitudinário para sustentar a formação de uma associação criminosa e estender a todos uma penalidade por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, apontando para modalidades de participação de autor intelectual, agente financiador, executores materiais e autoridades omissas.
Afinal, essa abstração, imprópria para o direito penal, considerou um liame subjetivo entre os objetivos de todas as pessoas presentes na manifestação, para além da instrução processual, o que é inconcebível sob o regime constitucional que assegura a individualização da pena, que não poderá passar da pessoa do condenado, relativamente à conduta que praticou.
Insubsistente foi a acusação de tentativa de instituir um governo militar, mormente pela ausência de militares nas manifestações. Nesse passo, a lição do saudoso Prof. Dr. Paulo Bonavides, em seu “História constitucional brasileira”, nos ensina que “sem soldados não se fazem as revoluções”. Ainda que este fosse o ânimo, ausente a força militar, não poderia o próprio povo dar um golpe contra si, se ele é o titular do poder. Não é demais recordar que o titular da soberania precede até mesmo a Constituição, sendo ele quem exerce o imanente Poder Constituinte. Em entrevista concedida à CNN, o próprio Ministro da Defesa José Múcio rechaçou a tese de golpe de Estado.
Como reconhecido pelo parquet, havia pessoas armadas com “paus, pedras e estilingues”, visando o cometimento dos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado. Ainda que fosse esse o intuito dos manifestantes, afigurar-se-ia o impunível crime impossível. Além disso, sobre essas figuras penais, o art. 359-T, do CP, exclui a tipicidade de qualquer crime do Título, quando a conduta do agente se referir a reivindicação de direitos e garantias constitucionais.
Sem comprovar qualquer nexo de causalidade entre ação individual e dano civil, o MPF citou o art. 387, IV, do CPP/41 – que fala em fixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pela depredação do patrimônio público -, para o pedir a condenação de cada denunciado ao pagamento de indenização em valor correspondente ao dobro dos danos materiais e os danos morais coletivos em valor não inferior, no total, a R$40.000.000,00, inviabilizando assim a vida financeira de cada família, de modo a intimidar qualquer posicionamento contrário ao regime imposto.
Cautelarmente, o MPF requereu a indisponibilidade de bens de cada denunciado até a referida cifra, pressupondo uma participação delituosa e uma solidariedade obrigacional dos supostos partícipes. Dissimulando pensamento humanitário, falou o MPF em dignidade da família para autorizar a disponibilidade do valor de um salário mínimo para a manutenção da família de cada denunciado. Note o leitor que não considerou o parquet as peculiaridades de cada família, como quantidade de dependentes e despesas. Tampouco o MPF observou que a disponibilidade do salário mínimo deveria ser mensal, o que revela o caráter desumano da medida cautelar empreendida pelo braço institucional da repressão.
No atual estágio da persecução penal e pelo excesso de prazo, é urgente o relaxamento ou a revogação da prisão preventiva, a concessão da liberdade provisória ou a conversão da prisão em flagrante para a modalidade domiciliar, em favor daqueles que ainda se encontram presos, sem julgamento, dada a ausência de indícios suficientes do cometimento dos crimes de associação criminosa e de deposição do governo constituído (art. 359-M, do CP/41).
Ainda nos casos eventuais de quem realmente cometeu algum delito, não se identifica qualquer possibilidade de reiteração delituosa a sinalizar risco à ordem pública, tampouco a existência de elementos concretos indicadores do risco de frustração da aplicação da lei penal ou a necessidade da prisão por conveniência da instrução criminal.
Portanto, não se justifica a manutenção da prisão preventiva dos presos que, a essa altura, podem ser classificados como presos políticos. Sob pena de afigurar cumprimento antecipado de pena privativa de liberdade, a prisão preventiva constitui exceção à regra, segundo a qual o réu responde o processo penal em liberdade (STF, HC 90.753, Rel. Min. Celso de Mello).
A manutenção dessas prisões tem afigurado a tortura psicológica que culminou no óbito do detento Cleriston Cunha, o Clezão. A tortura e a morte não são penalidades admissíveis em nosso sistema constitucional, salvo a última em caso de guerra. Ingressamos, então, claramente, em um estado de coisas inconstitucional.
Acerca das penas fixadas em até 17 (dezessete) anos, muito superiores a crimes gravíssimos, resta cristalino que estamos diante de uma política criminal fascista quando a suposta tutela do Estado passa a atingir qualquer cidadão que solicite esclarecimentos dos titulares de cargos públicos sobre o processo eleitoral.
Nesse aspecto, recordamos a lição de Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli que caracteriza o direito penal fascista pela finalidade de proteger o Estado através do estabelecimento de penas gravíssimas para os delitos políticos definidos subjetivamente, com amplo predomínio da prevenção mediante a intimidação.
A tese que transforma qualquer cidadão em partícipe de crime doloso contra o Estado, apoiada em uma caricaturada missão superestrutural, possibilita a arbitrariedade judicial quase absoluta, avocando o locus do delito para a própria estrutura estatal, quando reputa criminosa qualquer afirmação contrária ao entendimento da suprema autoridade. Em uma idiossincrasia da recente política criminal brasileira, parece não depender mais a criminalização de previsão legal e a manifestação do juiz da existência de processo judicial, como se pode depreender do vaticínio do Ministro Relator, em entrevista concedida, na qual afirmou: “quem comemorar o dia oito est[ar]á praticando crime”, inibindo assim qualquer manifestação popular, cujo lamento ou reivindicação pudesse ser confundida pela autoridade suprema com comemoração.
Nesse passo, estaremos a avançar em direção à política criminal soviética, que entende a função do direito penal pela intransigente defesa do Estado, não da preservação de direitos fundamentais, da ressocialização e da harmonia social. Em outras palavras, essa política criminal de caráter retributivo da pena combina a coerção com a persuasão, verdadeiramente eliminando o cidadão do convívio social quando a sua opinião não se mostrar convencida pela superestrutura.
Nos processos penais em questão, o MPF não precisou que ação, que móvel, que meio de prova estaria atribuída a cada manifestante. Nos autos estudados, em vez de agir como custos iuris, tergiversou o parquet como braço burocrático da repressão, visando criminalizar a manifestação por palavras de ordem, que seriam demonstrativas da intenção de deposição do governo ao se dizer “fora Lula”, “presidente ladrão”, “presidiário”, o que é intelectualmente pouco honesto pois equivaleria a criminalizar as palavras do eleitor que, em algum momento, gritou “fora Temer” ou “fora Bolsonaro”. A conduta dos manifestantes não pode ser considerada antidemocrática por questionar a lisura do sistema eleitoral, a representatividade dos parlamentares e a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a soltura e a elegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva.
É bom esclarecer que, numa democracia participativa, não constitui crime a insatisfação nem a crítica a resultado eleitoral, sendo lícito ao cidadão pleitear esclarecimentos ao Poder Público, sendo essa e tão somente essa a razão do manifestante que buscava desde a eleição obter resposta do Tribunal Eleitoral. Entendimento diverso forçaria o pronunciamento do aparato burocrático também sobre os questionamentos advindos do Presidente do PDT Carlos Lupi, que defendeu voto impresso para evitar fraude no processo eleitoral, e do Ministro da Justiça Flávio Dino, quando foi candidato a governador e, duvidando das urnas eletrônicas, afirmou serem elas extremamente inseguras e suscetíveis a fraudes.
Portanto, as manifestações políticas – que solicitam explicações do poder republicano – não podem ser confundidas com instigação ao cometimento de crime de dano, tampouco de crime contra o Estado Democrático de Direito, como pretendeu o representante do parquet.
A acintosa acusação midiática e política da suposta prática do crime de terrorismo pelos manifestantes veio a ser refutada pelo próprio titular da ação penal, que é o Ministério Público, quando, mais adiante, desclassificou tal possibilidade. É que se reconheceu se tratar de manifestação política e, por opção legislativa, seria “inviável o oferecimento de denúncia pelo crime de terrorismo”. Nesse caso, quem proferiu tais acusações levianas, à revelia da previsão constitucional da presunção de inocência, terá incorrido no crime de calúnia, contra os manifestantes.
Superada a desclassificação do crime de terrorismo e a devida apuração das responsabilidades de agentes caluniadores, salutar seria que a investigação parlamentar viesse a se estender para apurar eventual operação de guerra irregular, empreendida por agentes e militantes políticos, que podem ter atuado através de infiltração, subversão, emboscada, sabotagem e, aí sim, terrorismo.
Por fim, o título deste artigo refere-se ao Oito de Janeiro como “dia da infâmia“, pois assim foi designado pelos representantes do establishment. Esse termo já foi utilizado em nossa história recente em outros momentos, sempre servindo a enfatizar algum posicionamento partidário incompatível com o republicanismo. Chama-nos a atenção do seu uso pela então Presidente do STF, quando comparou o acontecimento com o ataque japonês a Pearl Harbor, durante a segunda guerra mundial, que contabilizou 2.403 mortos, motivo que levara o Presidente dos EUA, em célebre discurso, a declarar o dia 07 de dezembro de 1941 como uma data que viverá na infâmia.
Por não compreendermos um juízo passional que intente reduzir o vulto histórico do ataque a Pearl Harbor e por não se tratar de um discurso coloquial que admitisse tal exagero comparativo, só podemos entender a hipérbole da Chefe do Poder Judiciário como um incongruente e desproporcional sentido figurado, que explicita o grau de envolvimento e o interesse que o enunciador possui em propagar uma ideia – quase sempre inverossímil, segundo lição extraída da Gramática Houaiss do Prof. Dr. José Carlos de Azeredo -, conferindo-lhe portanto especial relevo partidarizado. Nesse passo, a manutenção das insustentáveis prisões políticas terá unicamente a finalidade de intimidar e aterrorizar o povo, o que seria completamente antirrepublicano e antidemocrático, forçando-nos a concluir que nem mesmo todo o oceano poderia lavar este padrão de infâmia.
Em outros artigos ainda serão analisados temas como (xxi) a CPMI, (xxii) o oportunismo da soltura de mulheres no dia da mulher; (xxiii) a negligência do GSI, a presença do Ministro Gonçalves Dias e a falsificação do relatório; (xxiv) a prisão de advogada defensora de presos políticos como ato de intimidação das defesas; (xxv) os acordos de não persecução penal.
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Uma resposta
Excelente artigo! Estamos no Estado Soviético de Direito.