Do sagrado ao profano: a intolerância religiosa reversa na Bahia

A corda do caranguejo e os desafios do pluralismo religioso na Bahia

O inquérito do Ministério Público, aberto para investigar um trecho musical entoado pela cantora Cláudia Leite, trouxe à baila uma questão intrigante: estaria a intolerância religiosa sendo atenuada ou revertida na Bahia?

A controvérsia teve início com a queixa oferecida pela Iyalorixá Jaciara Ribeiro e pelo Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), que alegaram ofensa à honra e à dignidade das religiões de matriz africana, por substituir a palavra Iemanjá por Yeshua.

Por  ter alterado o verso “saudando a rainha Iemanjá” por “eu amo meu Rei Yeshua”, a cantora Cláudia Leite pode vir a ser condenada a pagar uma indenização de dez milhões de reais por dano moral coletivo e ser punida criminalmente com pena privativa de liberdade de até cinco anos de prisão.

Participação civil na audiência pública

A laicidade do Estado não deve significar a exclusão da religião do espaço público, mas sim a garantia de que todas as crenças possam coexistir sem perseguições ou privilégios indevidos.

Nesse sentido foi a participação do egrégio Instituto Brasileiro de Direito Religioso (IBDR) na audiência pública, que, por meio da sua representante, a Dra. Zizi Martins, apresentou uma abordagem técnico-jurídico, ressaltando a importância da proteção constitucional da liberdade religiosa como direito fundamental individual, reconhecendo o direito da artista cantar “ao Deus dela”. A defesa dessa cláusula pétrea foi o suficiente para se desencadear manifestações raivosas e um alvoroço no auditório.

Apesar da sociedade baiana ser composta por 83,8% de cristãos e apenas 0,3% de religiosos afro-brasileiros, o público da audiência foi amplamente composto por representantes desta última; valendo salientar que a etnia não é critério definidor da religião.

A composição do público na audiência evidencia uma significativa capacidade de mobilização e de ocupação de espaços, contrastando com o menor percentual cristão no espaço de debate público. Essa diferença na participação cívica coloca em dúvida a forma e o prazo de inscrição e a finalidade da convocação para o evento.

Um dado relevante para a análise é que, historicamente, a identidade religiosa católica já foi requisito para o exercício da cidadania brasileira. Hoje, contudo, os cristãos aparentemente abandonaram a ágora, enquanto algumas lideranças afrorreligiosas exercem ativamente o seu protagonismo.

A par dessa diferença, sobreleva-se a necessidade de aprimoramento do instrumento de participação popular, para assegurar que todas as vozes sejam ouvidas, visando uma construção equilibrada e harmoniosa das políticas públicas e para a preservação dos direitos fundamentais, evitando um cenário de disputa entre religiões, como se estivéssemos empreendendo uma cruzada.

Na audiência, um advogado chegou a sugerir que Cláudia Leite  “cante gospel” e disse que “a partir de agora, vão ter que colocar a mão no bolso e alguns vão ter que ir para a cadeia para aprender que não está em vigor no Brasil a Bíblia“. Além disso, um líder quilombola efetuou a troca do nome de Deus pelo de Oxalá, em uma música gospel.

É constitucionalmente reprovável a disputa entre religiões, afinal a liberdade religiosa constitui direito fundamental de toda e qualquer pessoa, não se podendo relativizar discriminação contra religiões de matriz africana, cristã ou qualquer outra.

É importante que o aparato estatal não sirva como instrumento de repressão das expressões religiosas, artísticas e culturais, censurando as manifestações artísticas e cerceando as liberdades de expressão e de crença religiosa.

O risco da institucionalização da cristofobia

A seletividade da atuação ministerial gerou questionamentos sobre um possível desequilíbrio na defesa da liberdade religiosa. O vereador Cézar Leite, por exemplo, sugeriu que a ausência de espaço para sua manifestação na audiência pública poderia indicar um viés institucional, reclamando o representante dos munícipes da falta de oportunidade de usar da palavra na audiência, convocada para ouvir o povo.

Do mesmo modo, a seletividade da atuação policial levanta iguais questionamentos. Um exemplo ilustrativo é a criação da Ronda de Defesa da Liberdade Religiosa, denominada Ominira, em janeiro de 2024. Tal preocupação se intensifica ao observar que, em 28/01/2024, um ataque virtual contra um consistório católico, devidamente registrado por meio do Boletim de Ocorrência nº 00068745/2024, não resultou qualquer ação investigativa conhecida. Será que essa omissão ocorreria, caso o alvo fosse uma reunião religiosa candomblecista ou umbandista?

Para ser constitucionalmente aceitável uma ronda policial deslocada às religiões, a proteção estatal deve se estender a todas as religiões indistintamente, devendo ela atuar verdadeiramente em defesa da liberdade religiosa, sem distinção de credo, nos limites da lei.

Portanto, nenhuma religião deve ser atacada, seja de origem africana, europeia, asiática, muçulmana ou judaica, sendo imprescindível o equilíbrio na aplicação das leis e das políticas públicas, evitando qualquer viés ideológico ou partidário e jamais como polícia de crença específica, como sugere a referida ronda, desde o seu nome.

Caso as críticas dirigidas a Cláudia Leite tenham sido deliberadamente articuladas para intimidar artistas quanto à expressão de suas convicções religiosas, o efeito poderá ser contrário, vez que a bíblia revela profeticamente a perseguição religiosa: “Sereis odiados por causa do meu nome” (Mt 10:22).

É importante que a questão seja tratada com seriedade, para que não se fomente desunião em uma sociedade que já enfrenta desafios históricos de convivência religiosa e não acabe servindo para a fragmentação da sociedade, favorecendo elites que se perpetuam no poder por meio da tática milenar do divide et impera, muitas vezes potencializada por políticas identitárias e, mais recentemente, por mecanismos institucionais.

Diálogo entre cultura e fé: a liberdade artística e a igualdade de proteção

A interseção entre cultura e fé levanta um questionamento importante: até que ponto a liberdade artística pode ser vista como ofensivas às religiões?

Se misturar ritmo e religiosidade fosse, por si só, um ato de intolerância, seria questionável, por exemplo, a prática do saudoso cantor Irmão Lázaro, que incorporou tambores em seu louvor, após a sua conversão ao cristianismo.

Outro caso a se analisar é a canção “14 de Maio”, de Lazzo Matumbi, cujo videoclipe retrata uma agressão física a um pregador cristão na rua, após a aparição de um orixá, finalizando com a provocativa pergunta: “Entendeu a mensagem?”.

Além disso, episódios como a reação de Ivete Sangalo à alteração musical feita por Cláudia Leite e o tratamento dado à cantora Baby do Brasil, quando esta manifestou sua crença, no Carnaval de 2024, também suscitam questionamentos sobre os limites da liberdade artística e da aceitação do pluralismo religioso no espaço público.

Destaca-se ainda que não é nova a alteração musical feita por Cláudia Leite, tendo ela cantado essa versão pelo menos em fevereiro de 2021, com transmissão pelo canal Multishow, acompanhada no palco da própria Ivete Sangalo.

Neste debate entre liberdade religiosa, censura e manifestação artística, observamos que, no mesmo dia da audiência pública que se propôs a defender as religiões de matriz africana contra uma suposta opressão cristã, foi noticiada a performance do “Jesus de fio dental”, no Bloco da Lage, em Porto Alegre.

Bem assim, não podemos olvidar da exibição da coreografia da escola de samba Gaviões da Fiel, no desfile do carnaval de 2019, na qual um ator representando Jesus Cristo foi arrastado, empurrado e pisoteado por um outro ator, caracterizado como o diabo.

Se esse episódio não foi considerado ofensivo pelo Judiciário, seria a troca de um verso por Cláudia Leite que ofenderia indistintamente todos os devotos de todas as religiões afro-brasileiras?

As expressões artísticas devem ser avaliadas de forma equilibrada, sem que haja um viés na interpretação de qual manifestação cultural merece proteção ou reprimenda, mas concedendo tratamento isonômico, seja qual for a religião ou o artista.

Não há ilicitude na conduta de Cláudia Leite

Em nosso parecer, não há ilicitude alguma na conduta da cantora e, ainda que houvesse, seria de grande desproporcionalidade qualquer penalidade civil ou criminal. Essa parece ser também a opinião do Prof. Samuel Vida, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, mesmo reconhecendo a relevância do debate social, afastou a ideia de reprimenda particular à cantora.

Na perspectiva do direito autoral, é insubsistente a assertiva de que “ou não canta a música, ou canta como é a versão original”, como pretendeu o advogado de uma entidade participante, que, vale ressaltar, não é o autor da obra musical em questão. Dados os limites do direito do autor, pequenas alterações de versos, durante a execução musical, não constituem ofensa ao direito do autor. É essencial conhecer os termos da cessão do direito do autor ou do contrato de edição e execução musical, tratando-se no caso de uma obra que não está sob domínio público.

Conclusão

Merece destaque o perspicaz artigo do Prof. Dr. Georges Humbert, que percebeu a disparidade da circunstância atual com o usual sincretismo religioso que se via na Bahia, fazendo ele alusão à incitada convivência do sagrado com o profano, tão comum nas terras baianas.

A liberdade religiosa é um princípio constitucional que deve ser resguardado com equidade. O pluralismo religioso brasileiro, tradicionalmente marcado pelo sincretismo, deve ser preservado sem a imposição de barreiras artificiais entre fé e cultura. A utilização de mecanismos estatais para restringir manifestações de fé ou para privilegiar um grupo sobre outro não contribui para a harmonia social.

No contexto atual, é essencial que o debate sobre liberdade religiosa se faça de forma equilibrada, sem criar novos vetores de intolerância. O Estado deve atuar para garantir a proteção igualitária de todas as expressões religiosas, respeitando o direito fundamental da liberdade de crença e de manifestação. Afinal, o avanço da sociedade depende do reconhecimento mútuo e do respeito às diferenças, e não da imposição de um pensamento único.

Assim como um caranguejo que se movimenta lateralmente, mas não para a frente, o estado da Baía de Todos os Santos talvez esteja a retroceder ao inverter os polos em direção a uma intolerância religiosa juridicamente profana, em detrimento do pleno respeito à sagrada liberdade religiosa, um direito fundamental individual e, portanto, uma cláusula pétrea da Constituição brasileira.

3 respostas

  1. Excelente artigo. Mostra claramente a indignação seletiva e uma clara ação judicial para angariar dinheiro.

  2. TRATA-SE AO M0DO DE VER DE UM DEBATE INFANTIL EM QUE SE PERDE E SE GASTA MUITA TINTA PARA NADA. TENDO EM VISTA O PONTO DE VISTA INDIVIDUAL DE CADA DO PONTO DE VISTA RELIGIOSO AO QUAL SE QUER DAR VISBILIDADE POR VAIDADE CIUME E ONVEGA. E O QUE É PIOR ENVOLVENDO UMA INSTITUIÇÃO DE ESTADO – COMO.O.MINSTERIO PIBLICO E O PODER JUDICIÁRIO COM TANTAS PROBLEMAS RELEVANTES DA NOSSA SOCIEDADE PARA OS QUAIS SÃO INCOMPETENTES E DESPREPARADOS PARA RESOLVER A DEPRNDER DIS I NTERESSES A QUE SERVEM

    RIZODALVO MENEZES EM 29.01.25
    É A MINHA PARTICIPAÇÃO COMO CRISTÃO. – NUM DEBATE INUTIL..
    POR ISSO QUE ELES PREFEREM NÃO DÁ IBOPE A MATTIZES DE SEITAS OUTRAS.
    A RELIGIÃO VERDADEIRA E ÚNICA É A DE CRISTO. QUE VEIO AO MUNDO COMO SER DIVINO E EM.FORMA HUMANA. PARA NOS ENSINAR O MANUEL DO SER HUMAMO ENQUANTO VIVENTE NA TERRA PARA ALCANÇAR O AMOR E A VERDADEIA PAZ E HARMONIA ENTRE TODOS OS SERES HUMANOS NUM TOTAL DE 7 MILHOES NO PLANETA. AOS QUAIS PROVÉM COM TODOS BENS DO CÉU E DA TERRA INDEPENTE DO QUE PENSAM E DISCUTEM!

  3. Com tantas demandas que o Ministério Público tem em suas mãos, e o judiciário também , com problemas tão mais relevantes da sociedade para ser resolvido. Vai parar parar resolver um problema, que não existe ,fica claramente explícito a intenção dos envolvidos, a intenção de ganhar dinheiro e criar problema. Onde está o desrespeito e o prejuízo e a intolerância religiosa por ser falar no nome de Jesus. Onde está a ofensa. Vamos viver em paz meu povo ,

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